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domingo, 27 de junho de 2010

Poesia Rúnica dos Fractais Freyr_0004.wmv


Aqui estão alguns poemas visuais montados a partir de um trabalho com fractais e runas.

Metafísica do Corpo 0001

Sono


Além da noite
Que me chama
Além do sono
Que me leva
Além do cansaço
Que me abate
Cama.

Olhos


Vejo o que
Em mim
Me revela.

Nada


DIGO TUDO
QUANDO NÃO DIGO
NADA
NADA HÁ NO TUDO
QUE DIGO
NÃO DIGO

NADA

Sonho


Deito a mulher,
Sonho a menina,
Acordo a sábia.

A Busca


Busco a mulher
Que me olha
No espelho.
Vejo nela
Meu passado,
Encontro
Meu futuro.

Busco a mulher
E descubro minha imagem.
Narciso vê sua face
E se apaixona.

Busco a mulher
Que existe
E principalmente
Persiste,
Apesar da dor,
Apesar do escuro.

Vejo o que
em mim não se mostra,
busco o que
me recolhe,
crio o que
me escolhe.


Busco o que
Encontro:
Vejo a mim mesma.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Elixir da Vida

Minha doçura transborda
não me afoga
se a deixo escorrer
e melo o mundo.

Minha luz brilha
não me cega
se abro as minhas janelas
e irradio o brilho.

Meu fogo incendeia
não me queima
se espalho o calor
e aqueço o entorno.

Minhas perguntas me levam
não me perturbam
se busco
a razão por trás de tudo.

Dou mais
brilho mais
queimo mais
quero mais

Vivo mais.

Uma História de Amor



Nada é melhor do que aquele cheiro de café por fazer. O aroma, a temperatura e a cor estimulam seu consumo diário. Aquele café necessário não apenas para abrir os olhos e levantar, como acordar e despertar o desejo pelo trabalho. Um desejo que precisa lutar contra a inércia de ficar na cama, rolar nos lençóis e agarrar o travesseiro. O café faz milagres, porém o maior milagre é despertar desejos adormecidos.

Não é dia, é noite. É tarde, bem tarde. Na verdade, é hora de dormir. Mas o desejo está acordado, chamando, gritando, pedindo pela realização de outros desejos. Os hálitos de café e de sono guardam o tempero de outras vontades. Os braços que se tocam carregam nos pêlos outros quereres. As bocas se mexem e falam. Mas realmente não importa o que digam. Só importa estar lado a lado com o objeto de desejo.

É quase meia-noite. A aula acabou. A sala está vazia e as perguntas já foram respondidas. Um trecho de O Imortal de Jorge Luís Borges foi discutido. Justamente o trecho em que o narrador descobre quem era o troglodita, a quem apelidara de Argos, o cão moribundo da Odisséia. Depois de tantas aulas e tantas turmas, pela primeira vez um aluno descobria que se tratava de Homero, o próprio autor de Odisséia. Ele era especial.

A turma de Ciências da Computação estava tendo uma aula de Comunicação e Expressão. Era um momento de leitura e interpretação de texto. O que uma turma de Ciências da Computação vai conseguir tirar do texto? Pensava a professora. No entanto, a preparação das aulas fora sua. Houvera escolhido este trecho para a leitura e discussão da noite. Era início do mês de março de 2000. Começo do ano letivo e do semestre.

Os olhos se tocaram. Não havia nada de formidável à primeira vista: blazer levemente desbotado e amassado depois de um dia de trabalho. Ânimo e disposição sobre humanos para seguir à aula depois de oito horas de trabalho mais quatro horas de locomoção. Tinha que ter uma curiosidade e um interesse maiores do que a própria resistência. Além do auge da forma física dos trinta anos.

A aula acabou e uma carona foi oferecida. Era mais do que uma carona. Afinal, não importava que ele fosse para a Zona Sul e ela fosse para a Zona Oeste. Era mais um momento para estarem juntos. Ele era especial.

Cheio de sutilezas: um cartaz impresso comemorando o Dia Internacional da Mulher. Uma pesquisa sobre sua vida no Google, onde registrava a defesa de uma tese sobre O Processo Criativo de Haroldo de Campos nas Galáxias. Neste dia, ao receber de suas mãos a pesquisa, bateu a saudade de oito anos atrás, época em que defendera suas teorias. Época prazerosa, de grande aprendizado e um extremo prazer intelectual. Época em que o limite era a vontade e o gozo, o aprendizado.

Agora outro prazer se desenvolvia, o prazer de estar ao lado de alguém com sensibilidade para perscrutar o íntimo, abafado por momentos de dor e frustração. Algo além sempre nos move.

Assim, a carona levou ao Fran´s Café da Faria Lima. Não levou apenas esta vez, mas levava constantemente, duas vezes por semana. Então o Fran´s Café passou a ser o estacionamento da Faculdade, dentro do Ford K. Onde uma garrafa térmica servia como o garçon da cafeteria. E se falava do desejo de ter um filho.

As vezes em que se tomava café levaram a um passeio sábado de manhã no Parque do Ibirapuera. Sentados, à beira do lago a observar os cisnes. Horas se passaram. O suficiente para que o sol matutino deixasse um corado nos rostos. Na despedida, foi irresistível observar sua marcha ao se afastar do carro. E a vontade só crescia.

O desejo, no entanto, se realiza quando não se espera. Um encontro de tarde para levar a um exame de endoscopia, provocou sono. O sono levou ao motel. Neste dia, o amor se consumou:

_Assim eu posso ficar grávida.

_Quem disse que eu não quero ter um filho seu?

Então, Adônis conquistou Diana e Hera na mesma mulher. E o desejo de café virou um vício de amor.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Brincadeiras de Criança


Alice e Mônica eram irmãs e amigas muito próximas. A diferença de idade de alguns meses colaborava com esta proximidade, uma tinha 13 anos e a outra 12. Por isso, Berenice, a caçula de cinco anos, não era a companhia predileta. Viviam no campo, no interior de São Paulo, na época em que nem se cogitava em transformar Piraju numa estância turística, ou circuito de águas limpas. É verdade que as águas eram bem mais limpas. E a região sempre foi muito bonita. Se hoje se pode visitar suas cachoeiras, praias e florestas; na década de 40, era o paraíso.

Para estas crianças que viviam no meio do mato, não existiam as mesmas brincadeiras que as crianças têm hoje. As bonecas eram feitas com batatas, espetadas em quatro palitinhos, o que virava um boizinho. Ou ainda eram feitas numa espiga de milho cheia de fiapos, que viravam cabelos. Fazer boneca com sabugo de milho era comum.

Assim como era comum correr pelos campos, ir atrás das galinhas, ou atrás dos cachorros _ amigos fiéis. E quando se decidia roubar frutas no pomar dos vizinhos?

Era uma aventura: pular cerca, correr pelo pomar, subir nas árvores e comer as frutas. Fruta madura era uma delícia, mas fruta verde também valia. Bastava que para isso se carregasse um pouco de sal nos bolsos da jardineira (um tipo de calça de brim curta com suspensórios e um grande bolso no peito). Jogar sal tirava a acidez da fruta verde. Levar uma faquinha era útil, mas na falta de faca, os dentes ajudavam a tirar as cascas. O importante era comer a fruta no pé. Não havia nada tão prazeroso!

Berenice saía com a prima Maria Rita, ambas com a mesma idade, cinco anos, vizinhas na roça. Criança no meio do mato não corria perigo. Sabia se virar. Era mais ágil e mais esperta para conviver com a natureza. Mas o que criança nunca tem noção é do perigo.

_Berê, vamo pegá fruta no pomar do seu Genésio? É época de manga!

_Oba, vamo embora, Ritinha!

_Berê, vamo pegá sal na sua casa porque está mais perto!

_Vamo! Berenice passou na cozinha, pegou uns punhados de sal e pôs no bolso da jardineira. Então, as duas saíram correndo, passando por Dona Maria que estendia a roupa no varal de corda.

_Berê, não vai roubar fruta do seu Genésio novamente, porque ontem ele passou aqui reclamando e avisou que colocou um cachorro bravo para atacar quem entrasse na sua fazenda!

Berenice e Ritinha saíram correndo, mais preocupadas com as mangas que iriam comer do que com a recomendação de Dona Maria. Mas, por via das dúvidas, voltaram à cozinha e pegaram um pedaço de carne crua. Alegres conversavam:

_Seu Genésio é muito guloso e não vai comer todas aquelas mangas. Disse Ritinha.

_Por que a gente não pode pegar um pouco? Concordou Berenice. Uma olhou para outra de um jeito maroto e sorriram.

Berê tinha bastantes cabelos, pretos e cheios. Apesar de que vivia suja de terra e descalça, a mãe mantinha seus cabelos curtos, para mantê-los limpos e combater mais facilmente as lêndeas, inimigas das crianças na época de calor. Maria Rita era mais clarinha de pele, sardenta e com cabelos finos, lisos e castanhos. Por isso, sua mãe sempre os deixava presos num rabo de cavalo. Ambas viviam pulando e correndo pela terra, por isso era difícil descobrir até mesmo a cor de suas peles, no meio de toda a sujeira.

Enquanto Berê e Ritinha corriam pelo campo até a fazenda do seu Genésio, Alice e Mônica, sentadas na varanda, tinham uma idéia:

_Vamo até o rio, Mônica? Está um calor terrível! A gente põe o maiô e vai nadar.

_Boa idéia. Disse Alice. Mas nós temos que colocar o maiô embaixo da roupa e sair sem a mãe perceber, senão ela vem com alguma idéia de fazer a gente passar até a venda.

_Tá bom!

Alice e Mônica já eram mais cuidadosas com a própria imagem. Tinham a pele clara e os olhos castanhos claros; o que já se via melhor, uma vez que não andavam tão empoeiradas como a caçula. Usavam vestidos simples de chita, mas mantinham os cabelos compridos e bem penteados. Usavam sandálias de dedo, ao invés de viverem descalças e também não possuíam tantos cabelos como Berenice e Tereza, a caçula e a mais velha.

Puseram o maiô e se dirigiram ao portão, mas Dona Maria, que percebia todos os movimentos da casa, gritou:

_Meninas, venham cá, eu preciso de um favor!

_Eu não falei que ela iria nos pedir algo se não fôssemos espertas? Disse Alice. Para a Berê ela não pede nada.

_Mas também, a Berê está sempre suja! Falou Mônica.

_É verdade. Comentou Alice, com um risinho maldoso.

Aproximaram-se do varal e perguntaram:

_O que a senhora quer, Dona Maria?

_Comprem um saco de açúcar porque hoje quero fazer bolo de fubá. E um saco de farinha! Complementou Dona Maria passando a mão no bolso do avental. Aqui estão os tostões!

As meninas se afastaram, mas continuaram reclamando.

_Diacho que ainda vamo tê que carregá peso! Reclamou Alice.

_ Vamo à venda primeiro, aí nós voltamo e vamo ao rio. Sugeriu Mônica.

_Assim podemo nadá a tarde toda!Aprovou Alice.

Enquanto as duas iam e voltavam, andando pela terra por alguns quilômetros, Berenice e Maria Rita seguiam em direção à cerca do seu Genésio, atentas ao novo cachorro bravo.

_Venha, Ritinha, vamos ao pomar!

_Você está carregando a carne, Berenice?

_Estou, por quê?

_Porque acho que o cachorro está vindo!

Era um cachorro grande, com cara de bobo, castanho, orelhas caídas, totalmente avesso a estranhos. Era um fila brasileiro. As meninas tentaram alimentá-lo e fazê-lo mudar de idéia de atacá-las, porém, este cão não era manso. Ele aceitou a carne, mas continuou latindo. Então, quando Berê e Ritinha perceberam que não conseguiriam fazê-lo mudar de idéia, resolveram aproveitar o momento em que o cachorro se distraía com a carne e correram para a cerca.

Berê ajudou Ritinha a pular, mas quando chegou sua vez, como o cachorro estava já aos seus pés, ela pulou a cerca correndo, e acabou com o braço pendurado no metal.

_Ai, ai, Ritinha, me ajuda! A menina sentia bastante dor, mas o susto de ver todo aquele sangue escorrendo a espantava ainda mais.

Sorte que Dona Maria era daquelas mães observadoras e espertas, que sempre sabem o que os filhos vão fazer.Pois ela seguira as pequenas e pulara a tempo de ajudar Berê a tirar o arame farpado do antebraço.

_Menina, eu não avisei que não fizesse isso?

_Mas mamãe! Copiosas lágrimas encharcavam seu rosto, vermelho de medo, de susto e de dor.

Dona Maria pegou Berenice no colo e levou a filha até em casa. Colocou-a sentada na cadeira da cozinha; foi pegar uma toalha limpa e um litro de álcool para limpar o machucado. Infelizmente, o sangue jorrava sem parar.

Neste momento, Alice e Mônica chegavam cansadas com os sacos de açúcar e de farinha. Mal tiveram tempo para deixá-los no chão da cozinha e notaram o que ocorrera. Já sabiam que ainda não poderiam nadar no rio. Sua mãe ao vê-las gritou:

_Vão correndo chamar seu pai na oficina, porque ele vai precisar levar Berenice para o médico. Acho que vai precisar costurar o seu braço.

E lá se foram as duas, antes tão ansiosas para nadarem, agora caminhavam mais alguns quilômetros para chamar o pai na oficina. Que droga esta Berenice, este porquinho do mato, que só dá trabalho. Tudo o que elas planejaram há horas era irem ao rio e darem muitas braçadas naquelas águas límpidas e refrescantes. Novamente o desejo se adiava,agora por causa da caçula.

Chegando à oficina, o pai as recebeu feliz.

_Oi, meninas, vieram visitar o pai?

_Antes fosse. A Berenice não obedeceu à mãe e foi roubar fruta no seu Genésio. Delatou Alice.

_Aconteceu alguma coisa? Ângelo levantou do chão alarmado. O compadre falou que tinha posto um cachorro bravo dentro de sua propriedade. Ela foi mordida?

_Não, pai. Disse Mônica com ironia. Ela correu do cachorro e ficou com o braço preso no arame da cerca.

_E agora o braço não pára de sangrar. A mãe disse que ela vai precisar de médico. Acho que vai ter que costurar e tomar injeção. Complementou Alice.

_Virgem Santa! Venham, meninas, eu levo vocês para casa!

Ângelo chegou em casa preocupado. Porém, a preocupação virou ação quando viu Berenice com o bracinho embrulhado numa toalha ensopada de sangue. Pegou a filha no colo e levou-a até o médico mais próximo. Ao chegar, o doutor limpou novamente o corte e deu uns quinze pontos. Em seguida, ainda aplicou uma injeção antitetânica. Berenice resistiu a tudo corajosamente. No entanto, quando chegou em casa, a mãe a aguardava.

Na porta, com a cinta na mão, Dona Maria deu uma surra em Berenice.

A menina soluçava, mas não dizia nada.

Ângelo, depois de ver a surra na filha, virou para a esposa e perguntou:

_Escuta, ela não sofreu o suficiente?

Berenice olhava para a mãe como cão sem dono. Com os olhos inchados de chorar.

_Isto é para você aprender a ouvir sua mãe quando ela lhe disser para não fazer alguma coisa. Tá vendo só? Olha o que você fez consigo mesma? Agora vai para o quarto e fica o resto do dia na cama, de castigo.

Quando via a mulher nervosa, Ângelo estava acostumado a ficar quieto. Se fosse por ele, o machucado já teria sido a lição suficiente.

Finalmente, Alice e Mônica foram ao rio. Aproveitaram a distração dos pais e foram nadar. Alice era exímia nadadora. E aprendera sozinha. Explorando aos poucos o leito do rio Paranapanema.

_Vamos atravessar do outro lado e voltar? Perguntou Alice.

_Você sabe que nada muito melhor do que eu. Mas eu vou tentar, se eu cansar, eu volto e fico esperando, tá bom? Respondeu Mônica.

_Tá bom! Confirmou Alice.

Dar braçadas naquele rio era delicioso, pois era um rio caudaloso, de águas abundantes. Alice se sentia um peixe quando começava a nadar. Aliás, ela podia ver vários peixes se parasse e observasse. Era uma água limpa e transparente. Nadou. Nadou.

Quando estava quase alcançando a outra margem, começou a sentir uma dor de barriga furiosa. Mas ela estava no meio do rio. Era longe e tinha que continuar nadando. Percebendo que a dor de barriga a dominava, não se fez de rogada. Olhou para as margens e percebeu que estava bem distante, então ninguém a veria. Não podia mais segurar. Puxou o maiô e cagou ali mesmo.

Depois, sentiu-se aliviada. Continuou nadando para encontrar a irmã que já parara. Ao se aproximar da margem, viu que estava cheia de crianças, adolescentes como ela. Olhou bem e percebeu que todos riam muito, ou melhor, gargalhavam. Virou para o lado e percebeu que um monte de merda a acompanhara.

Desde então, deram-lhe o apelido de Boião.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

domingo, 20 de junho de 2010

Pedido de Casamento

Sentada à mesa diante de uma toalha xadrez de branco e vermelho, Teresa via o passado diante de si. Sentia o calor dos primeiros brilhos do sol de verão, animava-a o cheiro de café que sua cafeteira elétrica fazia enquanto aguardava que o pão com manteiga que colocara na frigideira se transformasse em torradas.

Lembrava daquela manhã em que as irmãs tomavam café juntas: Teresa, Alice, Mônica e Berenice. Teresa, a mais velha, era também a mais voluntariosa. Tinha dezoito anos e era determinada, cheia de vontades. Cabelos cheios, longos e ondulados, molduravam seu perfil grego, lábios grossos, mas nem tanto, nariz afilado, reto, olhos grandes e olhar profundo. Lembrava-se da meninice. Sempre liderando grandes rebeliões, com sua beleza e decisão. Maria, a mãe, identificava-se com ela, embora parecesse uma irmã mais jovem ao invés de filha. Afinal, quando Teresa nascera, Maria tinha quatorze anos.

_Dona Maria, cadê o pai? Perguntava Teresa.

_Está na roça com seu avô. Por que Teresa?

_Avise-o que hoje à noite, o José vem pedir minha mão.

_O quê? Que José? Aquele cuja mãe trabalha na casa do lampião?

_É ele mesmo.

_Mas Teresa, você não acha que merece coisa melhor?

_Dona Maria, namorado não é coisa. Ele me ama e quer casar comigo. E eu quero sair desta casa. Quero ter a minha casa.

_Vejamos se seu pai vai concordar.

_ O pai vai concordar. Ele nunca me diz não.

Maria tomou um gole de café para ajudá-la a engolir aquela seca desfeita. Como sua filha Teresa, uma moça tão bonita, seria esposa do sujeito mais desclassificado das redondezas?

***

Era o pôr do sol quando José chegou. Naquele dia, ele evidentemente fizera a barba, usava paletó e gravata e colônia após a barba. Estava mesmo apresentável. Quem diria que não passava do filho de uma mulher de má vida! Com que homem sua filha pretendia se casar? Ângelo estava no banheiro, terminando de se lavar para receber o pretendente da filha. Quando entrou na sala de estar, suas filhas se retiraram ao verem a figura do pai austera. Maria fizera o mesmo, torcendo em silêncio para que o marido não permitisse o galanteio. Ângelo olhava aquele sujeito que pretendia levar-lhe a primogênita.

_O que você tem a oferecer a minha filha, seu José?

_Estou trabalhando. Arrumei um emprego no mercado.

_Você não acha que minha filha merece se casar com alguém mais respeitável do que o filho de uma senhora de má fama?

_A gente não tem culpa da mãe que tem. Além disso, seja lá como for, ela me criou um homem honesto. Sempre foi sozinha. Nunca teve ninguém que a ajudasse. O senhor é conhecido nas redondezas como um homem justo. Sabe que não se pode julgar os outros pelas aparências. Como minha mãe criaria um filho se não fosse fazendo o que ela faz?

_E o senhor acha que um pai deve concordar em entregar a mão de sua filha para um filho de mãe solteira? Não acha que ela pode ter coisa melhor e que por isso eu não posso concordar com seu pedido?

_Aqui, no meio do mato, não há muitas opções. Mas entendo sua preocupação de pai, ainda que eu vá fazer o melhor para ela. Só não prometo que vou desistir.

Ângelo ficou calado por um instante. Então, chamou a filha:

_Teresa, venha aqui! Você está decidida a se casar com este homem?

_Estou pai.

_Teresa, uma vez decidida, você não terá como voltar atrás. Tem certeza?

_Sim, pai.

_Então, seja feita a sua vontade.

Ângelo entrou no quarto e não disse nada. Sentou na beira da cama e começou a chorar. Maria viu o marido arrasado. Porém, ele já dera sua permissão. Se estivesse no poder de Maria decidir, ela mandaria a filha para a casa da irmã em São Paulo. Quem sabe se por lá Teresa encontraria melhores oportunidades e esqueceria o pretendente ruim. Se tudo o que Teresa queria era sair da casa do pai. Existiriam outras opções. Por que amarrar a vida à de um rapaz sem eira nem beira?

Um mês depois, a cerimônia se realizava na pequena igreja do então povoado de Itapetininga. Ângelo Marino, de terno preto e gravata, vestimenta raramente usada uma vez que era mecânico, entrava de braço dado com a filha mais velha. Estava todo elegante, imponente, de olhos azuis inchados de tão vermelhos,o que se julgou emoção de pai com a cerimônia de casamento da primogênita.

Entretanto, os convidados não imaginavam que minutos antes ele entrara no quarto das filhas, aflito, nervoso:

_Teresa, por favor, não teime com isso. Este José não vai lhe fazer feliz, minha filha. Se tudo o que você quer é ir embora, eu e sua mãe conversamos com sua tia Dole e vamos mandá-la para São Paulo. Lá é uma cidade grande, a capital. Você poderá conhecer outras pessoas, arrumar um emprego. Pode até ir trabalhar na feira com sua tia. Será uma boa oportunidade para conhecer pessoas, aprender coisas novas, começar sua própria vida. O que você me diz? É claro que eu não gostaria de vê-la longe, mas, minha filha, este José é um homem irresponsável, vive mudando de emprego. Está sempre bêbado, foi criado com mulheres da vida. O que você espera encontrar? Ele não será responsável o suficiente para formar uma família. Por favor, minha filha, desista!

As outras irmãs escutavam atrás da porta do quarto, junto com a mãe, que torcia para Teresa mudar de ideia. Ela sabia que a filha era teimosa, mas acreditava que se lhe fosse dada uma alternativa mais interessante, ela tomaria outra decisão. Além disso, Maria nunca vira Ângelo tão desesperado.

Mas, inesperadamente, a crueldade tomou conta da decisão de Teresa. Aparentemente tratava-se de uma crueldade com o pai que implorava de joelhos para que Teresa não se casasse. No entanto, ela só descobriria depois que a crueldade era dela consigo, já que esta seria a única e definitiva decisão de sua vida.

_Eu vou me casar, pai!

Ângelo, bondoso como sempre, acatou a decisão da filha até o fim. Apesar de saber que ela não seria feliz, deu-lhe o poder de decidir sobre sua vida. Porém, ele não esperava que uma semana depois, às dez da noite, batessem à sua porta.

Era Teresa.

_Pai, eu não vou continuar mais casada. O Zé chegou em casa bêbado pela segunda vez nesta semana. Assim não dá para viver com ele!

Ângelo, com o coração oprimido, mas acreditando fazer o que era certo, disse-lhe:

_Teresa, quem come a carne tem que roer o osso! Eu não lhe pedi para desistir deste casamento? Eu não implorei que você mudasse de idéia? Eu não lhe ofereci outra opção? Agora, assuma a responsabilidade, minha filha. Seja forte!

Assim, Ângelo, pegou a alça da mala da filha e levou-a até o portão da frente. Teresa que sempre foi tão decidida, nunca mais teve um momento de fraqueza. Pegou sua mala, levantou a cabeça e nunca mais a abaixou, a não ser neste momento em que aos oitenta e cinco anos, Teresa olhava a toalha da mesa e recordava dos pais falecidos. Era tarde para lamentar!

terça-feira, 8 de junho de 2010

Equilíbrio




o equilíbrio
está no fino limite
da cidade
do campo
da linha

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Diana

Era feriado, então resolvemos fazer um passeio ecológico. Visitar uma corredeira. Fazer caminhada. Estávamos todas de tênis de cano longo, a maioria de bermuda, devido ao calor e ao suor que escorria de nossas faces, de nossos cabelos, empapava nossos corpos quentes e úmidos.

Estávamos na mata atlântica, vegetação exuberante, sol, umidade, árvores frutíferas e muitas flores. Era primavera. Recebêramos indicações de uma corredeira não muito extensa, mas cheio de lamaçal. É claro que tínhamos tomado vários comprimidos de complexo B, pois nosso médico nos indicara a fim de evitarmos muitas picadas de insetos, além de beneficiarmos nossa musculatura e nosso sistema nervoso. Para fazer uma caminhada ecológica é sempre bom estarmos numa boa forma física, mental e espiritual.

Para algumas de nós, não se tratava apenas de um passeio ecológico, mas também de uma comunhão com a natureza e com o universo. Estávamos todas de biquíni embaixo das camisetas e bermudas, pois era definitivo nosso interesse por um bom banho de cachoeira. Fôramos informadas de que abaixo da cachoeira havia um lago de boa extensão e profundidade, ótimo para um banho relaxante.

Não se tratava de um passeio assim tão radical uma vez que não pretendíamos andar de caiaque ou mesmo fazer rapel. Porém andamos por cerca de cinco quilômetros, numa subida, até chegarmos ao local desejado.

Nossas mochilas carregavam toalhas secas, calcinhas, sutiãs, sabonetes, desodorantes, pentes e escovas de cabelo, além de presilhas e elásticos para prendermos os cabelos. É claro que não havíamos nos esquecido da garrafa de água que cada uma carregava, além de alguns sanduíches que variavam de queijo e presunto, atum com maionese, alface, rúcula e cenoura ralada e frango desfiado com azeitonas. Também faziam parte algumas frutas como: maçãs, bananas, pedaços de mamão papaia, pedaços de abacaxi cortado, ou mesmo, saladas de frutas.

Levávamos ainda kits de sobrevivência com álcool, esparadrapo, gaze, mercúrio cromo ou merthiolate, analgésicos e antitérmicos, algumas caixinhas de band aid, repelentes de insetos (embora não funcionassem tanto quanto a vitamina B). E, por fim, protetor solar. Sempre necessário neste sol tropical, de trinta graus à sombra.

As plantas eram muito bonitas, assim como algumas aves e alguns sagüis que haviam cruzado nosso caminho. Era uma picada aberta, portanto seguíamos uma trilha já feita para exploração por outros grupos de pessoas. Mas desta vez estávamos sós, entre mulheres. Éramos cinco ao todo. Ansiosas para achar a cachoeira.

Depois de cerca de quatro horas de caminhada puxada, morro acima, achamos a cachoeira. Podíamos vê-la do alto do morro. Para chegar até ela, precisávamos descer uma trilha de pedras. Era pedregoso e áspero. Mãos, tênis e bermudas já estavam ralados nesta descida. Ainda assim, algumas insistiam em escorregar pelas pedras úmidas. Na realidade, não nos restava outra escolha, uma vez que para voltarmos também tínhamos que descer pela trilha de pedras, ásperas, mas não tanto, no meio desta umidade. Escorregávamos no lodo e na lama. Não tinha quem não tivesse sido batizada de lama.

Bem, a partir do momento em que chegamos até o lago, pulamos com roupa e tudo. E ai de quem se atrevesse a demorar a pular, porque era jogada na água. Foi um momento mágico porque podíamos ver os últimos brilhos do sol refletidos na água, ao mesmo tempo em que a lua estava enorme! Tão próxima que sentíamos como se fôssemos tocá-la. Era a primeira noite de lua cheia. A lua era tão linda, que senti minha parte animal e comecei a uivar para a lua. Uma das mulheres se empolgou e começou a desabotoar a blusa, tirar o cinto, abrir a bermuda e jogar na grama ao lado. Não se contentou em ficar de biquíni, começou a tirar a parte de cima.

O instinto nos pegou. Porque não pensamos. Quando uma de nós se despiu, todas ansiaram por sentir o brilho do sol e o nascer da imensa lua tomarem seus corpos. Brilhávamos duplamente. Éramos luz, sensação, calor, brilho, esperança, encanto, pele, pêlos, água, lama.

Começamos a nos enlamear e a nos lavar, com água e lama, ao mesmo tempo em que o sol morria e a lua nascia.

Sentíamo-nos mais do que simples pessoas, éramos mulheres, cheias de natureza, cheias de desejo, quentes, fervendo a água que nos tocava, moldando o barro que nos enlameava.

Éramos corpos ardentes e úmidos, molhados, encharcados. Éramos a umidade do desejo que nos fervia.

Aproximamo-nos. Sentimos nossos hálitos, nosso calor, nosso desejo, nosso princípio e nosso fim. E nos amamos.

Tocávamos nossos peitos, nossas mamas, nossos lábios, nossos púbis, nossas vaginas, nossos clitóris. E sentíamos. Mais do que nunca sentíamos. Sentíamos o poder da vida e do desejo.

Nossas mãos já tinham passeado pelos nossos corpos. Nós nos amávamos. Não nos importava se éramos gordas ou magras, morenas ou loiras, brancas ou negras. Éramos beleza e desejo. Assim como o sol e a lua.

Nossa entrega era total, como a lua cheia no céu, como seu reflexo no lago. Sentimos o sol e a lua nos nossos corpos. Brincamos com os dedos, com os lábios, com os sexos. Dedilhamos cada região dos nossos corpos que precisasse ser amada. Cada curva exuberante, cada recanto escondido era descoberto e explorado, ao máximo possível.

Gemíamos.

Nossos uivos eram gemidos de prazer. A água nos molhava e saía de nossos corpos em gotas de gozo e uivo.

Éramos unas. Éramos deusas. Éramos amadas. Podíamos tudo. Fazíamos tudo.

Acendemos a fogueira e dançamos a sua volta. Dançamos com a música da natureza. Ao som dos grilos, ao som dos animais noturnos. Ao som de nossas vozes.

Montamos nossas barracas e dormimos nuas. Em comunhão. Tivemos lindos sonhos e acordamos curadas de nossas neuroses, de nossas angústias, de nossos cansaços, de nossa falta de amor, da civilização...

domingo, 6 de junho de 2010

poesia rúnica



Alinha



A natureza
a linha

Velho



o corpo
envelhece

Ciclo





Entre a água
e a terra
existe o movimento
da vida

Alma



Além do corpo
algo me leva.

Avenida Faria Lima

Era o mês de outubro, há uns dois anos, justamente nesta época em que o ano ainda não terminou, mas não temos ânimo para fazer mais nada. É o período do ano em que ficamos com outubrite_ uma doença muito comum que ataca a vontade de qualquer professor.

Podemos defini-la como aquele momento do ano em que ainda temos muito trabalho para fazer, mas já fizemos, digamos 90%, então, já não resta energia para fazer mais nada além de empurrar com a barriga por mais dois meses, até o ano acabar.

Bem, eu me levantei, medi a glicemia, que deu 100. Tomei minha insulina como sempre: 20 NHP mais 4 humalog e tomei café da manhã: café com leite e pão com manteiga. As 20 unidades de NHP são para garantir o dia todo, uma vez que sou diabética insulino-dependente; já as 4 unidades de lispro é para garantir a queima de 40 unidades de Carboidrato, referentes ao pão francês e meio copo de leite.

Acordei minha filha, arrumei-a para levá-la à escola, como faço todas as manhãs. Peguei o carro e dirigi. Diariamente, eu dirijo uns três quilômetros até a escola da Fê, então continuo por mais uns quatro quilômetros até meu trabalho. Detalhadamente, moro na esquina da Corifeu com a Politécnica. Dirijo até as proximidades da Vital Brasil para deixar a Fernanda, então atravesso a ponte Eusébio Matoso, paro na primeira travessa e vou ao trabalho.

Mas, neste dia, antes de sair de casa, senti muito sono. Não me preocupei, afinal, quem não sente sono de manhã? Ou ainda, eu sempre sinto sono apesar de levantar cedo e ir logo ao trabalho. Muitas vezes o sono continua até umas oito horas. Então, nem me preocupei. Porém o sono continuou mesmo enquanto eu dirigia, com a Fernanda no banco de trás do carro. Eu bocejava muito.

Para dirigir, ainda mais a esta hora da manhã, nós não precisamos do cérebro, ou melhor, da consciência. O corpo faz tudo automaticamente. Muda a embreagem e acelera sem qualquer pensamento a respeito. Se o semáforo está vermelho e os carros param, todos param também. Se o semáforo fica verde e os carros seguem, todos os outros seguem. É só não aparecer nenhum motorista metido a esperto e fechar outro motorista, que todos os carros seguem num mesmo ritmo e chegam a seu destino.

Entretanto, não sei como, eu continuei dirigindo até a Rebouças, esquina com a Faria Lima. Eu era a primeira no semáforo. Então, alguém se aproximou da janela do meu carro, que estava fechada como sempre, e me perguntou:

_ Você está bem? Está parada neste semáforo há algum tempo.

Foi somente aí que eu notei que não estava bem. Mas levei um susto com alguém estranho de repente chegando perto da minha janela e perguntando se eu estava bem. Num reflexo, segui com o carro e continuei até a primeira travessa à direita, numa pequena rua tranqüila, com um prédio em construção. Estacionei o carro, notei que minha filha tinha dormido no banco traseiro. Peguei sua lancheira e comi seu lanche. Era uma crise de hipoglicemia. O remédio era comer.

Depois de comer todo o lanche da Fernanda, notei que eu não tinha idéia de como havia parado na Faria Lima. Fiquei apavorada e voltei para casa. A estas alturas, eu tinha uma terrível dor de cabeça, o que sempre acontece quando a glicemia, ou seja, a taxa de açúcar no sangue abaixa demais e sobe de repente, porque eu comi.

Passei o resto do dia com dor de cabeça, com medo e com culpa. Eu não sabia como eu tinha perdido a consciência enquanto dirigia. Porém, senti medo de que eu pudesse ter causado um acidente grave e ainda colocasse a vida da Fernanda em risco. Agradeci ao meu anjo da guarda, em que, neste momento, eu passei a acreditar. Surpreendi-me com o fato de que ainda inconsciente, eu tivesse conseguido resolver a situação da melhor forma possível.

Depois, fui ao médico e a minha endocrinologista explicou:

_A reação da insulina de longa duração, a NPH, quando começa a fazer efeito é intenso. Então, o ideal seria você tomar menos insulina no café da manhã e fracioná-la: no café da manhã e no almoço. Além disso, você precisa tomar menor quantidade de insulina de efeito rápido, a humalog, ou lispro, no café da manhã.

_Como eu perdi a consciência e não suei? O que normalmente ocorre no momento em que o açúcar no organismo abaixa muito? Eu perguntei à doutora.

_Isto ocorreu porque quando a taxa de glicemia está próxima do nível normal, há menores reações químicas no organismo. Estas reações, como suor em excesso, são mais comuns quando a glicemia está acima do nível ideal de controle.

Então, eu concluí que era mais seguro ter um excesso de açúcar no sangue do que ter nível de açúcar abaixo do normal. Afinal, não são os músculos que sentem o maior efeito, mas o cérebro. E não há nada pior do que perder a consciência. Enquanto o excesso de açúcar provoca a morte lenta, a falta de açúcar provoca a morte rápida.

O que eu iria preferir?

terça-feira, 1 de junho de 2010

O Primeiro Beijo

Eu tinha treze anos, estava na sétima série, o que seria o sexto ano atualmente. Meus pais e eu nos mudamos em setembro. Então eu tinha um final de ano para me adaptar. Adaptação pode ser algo problemático nesta idade, porém eu era aventureira.

Deixei uma escola católica em São Paulo e fui estudar numa escola pública em Tucuruí, no meio do nada. Meu primeiro dia foi estranho. Os alunos faziam marcenaria e eu nunca tinha chegado perto de uma lima, de uma serra, ou mesmo de madeira, a não ser as dos móveis de casa. Em São Paulo, a professora, uma freira, tentava nos ensinar a bordar. Que diferença!

Pelo menos a escola era um ambiente democrático. Todos a freqüentavam, não importava que posição na empresa ou nos órgãos governamentais os pais desempenhassem. Este tipo de preocupação nunca me afetou, embora eu devesse esta tranquilidade à inteligência do meu pai, que sempre foi brilhante, embora ele pudesse falhar em outros aspectos. Os colegas que freqüentavam a escola comigo eram os mesmos que moravam ao meu lado, ou quase os mesmos com alguma diferença. Afinal, a cidade era um povoado e praticamente todos se conheciam.

Eu tinha um colega com quem eu conversava bastante nos últimos tempos. Seus pais eram muito legais! Eu já os tinha conhecido. Éramos colegas de classe. Então, eu resolvi que queria ficar mais bonita.

Desci ao salão de beleza, que era algo bem familiar, porém longe de casa. Apareci por lá logo depois do almoço e foi quando eu tive minha primeira lição de preconceito. Encontrei no salão de beleza algumas professoras, algumas vizinhas. Muitas mulheres entravam e saíam rapidamente. Enquanto isso, eu ficava ali, esperando minha vez que nunca chegava.

Fazia parte de minha rotina ir à piscina todos os dias e passar a tarde toda lá, logo depois que chegava da escola e almoçava. Naquele sol equatorial de 40°, naturalmente morena, a melanina me protegia ainda mais dos raios solares, então eu vivia realmente muito queimada. Mas não era um queimado vermelho, era um queimado dourado, do tipo indígena, tupi-guarani, como eu recebera de herança da minha bisavó. Ainda assim, eu tinha cabelos finos, viviam ressecados, só possuíam oleosidade na raiz, porque as pontas ficavam tão queimadas que meus cabelos deixavam de ser lisos.

Bem, a ignorante da dona do salão, cometeu o maior fora da vida dela, quando ao final do dia, minha irmã e uma vizinha vieram me buscar, pois minha mãe estava preocupada com a minha demora no salão de beleza. Então a cabeleireira perguntou:

_Você trabalha na casa dela?

_Não, eu sou sua vizinha! Em Tucuruí, os vizinhos ocupavam a mesma função na empresa. Foi aí que a mulher descobriu que o marido dela deveria ser subalterno do subalterno do meu pai. Neste momento, eu nem precisei falar. Só olhei com desprezo, e nunca mais voltei naquele muquifo.

Desde então, descobri como não se deve desprezar ninguém, muito menos fazer julgamentos precipitados. Aprendi a lição da sombra e do espelho. A melhor vingança para uma ofensa é voltar para o outro sua insignificância refletida no espelho. Já a lição da sombra é a que diz que se você se esconde descobre mais fácil o pior dos outros.

Apesar dos pesares, consegui arrumar o cabelo. No dia seguinte, o Fabiano estranhou:

_O que você fez com seu cabelo?

Puxa, como os caras conseguem ser insensíveis, quando você passa horas no salão, preocupada em ficar mais bonita. Tudo o que eles conseguem dizer são estas observações ridículas. E a gente ainda se preocupa em agradar!

Reclamando ou não, a verdade é que em uma semana eu e o Fabiano combinamos de nos encontrar no clube, no final da tarde. Porém, começou a chover. O dia ensolarado tão comum virou cinzento, nublado e chuvoso. Eu tinha chegado antes, afinal, morava ao lado do clube. Mas não sabia que iria chover tanto, então já estava pensando em ir embora. Quando estava pegando minhas coisas para ir embora:

_Oi, desculpe a demora. Tudo bem?

_Tudo bem. Eu já estava desistindo de esperá-lo. Acabei de guardar minhas coisas para ir embora.

_Então, eu a acompanho.

_Tá bom!

Fomos andando devagar apesar da chuva, que pingava e nos encharcava. Então, ele pegou minha mão. Virou. Ficou de frente para mim. Aproximou o rosto e me deu um beijo. Eu correspondi. Foi o primeiro beijo que eu ganhei. Eu tinha ouvido as conversas de amigas que já tinham beijado, de como deveria encostar a língua, como usava os lábios, como chupava devagar...

Foi bom, mas estranho. A primeira sensação foi a vontade de secar a boca, mas eu não poderia fazer isso, porque significaria que eu não tinha gostado do beijo. E se eu estava esperando justamente que este beijo acontecesse, não poderia de jeito nenhum demonstrar nojo ou falta de desejo. Também não queria que ninguém soubesse que eu ainda não tinha beijado.

Adolescente sofre muito. É uma pena que os pais cresçam e se esqueçam disso.

Alergia

Era primeiro de julho. Minhas férias estavam começando, eu já estava de viagem preparada para Sorocaba. Iria passar o final de semana na casa dos meus pais, descansar e comer refeições preparadas com carinho pela minha cozinheira predileta: minha mãe. Já tinha, inclusive, preparado as malas, minhas e da minha filhinha. Mas, eu estava sentindo dores no corpo, sono, mal estar, nariz congestionado. Com certeza, era o caso de uma gripe forte que se aproximava.

Bem, não me fiz de rogada, resolvi passar no Pronto Socorro da Lapa, para ser medicada e melhorar meu estado febril. Passei na Clínica Geral, que me examinou e verificou garganta inflamada.

_ Você deve tomar um comprimido de amoxicilina a cada seis horas, por uma semana; pois está com a garganta inflamada. E com esta gripe A, é melhor prevenir.

_Mas, doutora, eu sou alérgica a penicilina. Bem, este remédio não vai causar alergia.

_Então, tudo bem.

Saí do consultório e já passei na farmácia. Viajei no mesmo dia para Sorocaba. Quando cheguei lá, às seis horas da tarde, tomei o comprimido novamente. No dia seguinte, domingo, começaram a aparecer algumas manchas vermelhas na virilha. Notei que parecia reação alérgica e continuei tomando a amoxicilina acompanhada de antialérgico. Voltamos para São Paulo, no domingo à noite.

Na segunda-feira, minha barriga já estava ficando toda tomada de alergia. Eu tinha uma consulta médica com a endocrinologista à tarde, então fui até o consultório da médica e pedi para ela examinar.

_Silvia, pare de tomar amoxicilina e tome este antialérgico. Vou lhe receitar um comprimido de 20 mg de Predisilona a cada doze horas, que é a dose máxima diária que uma pessoa pode tomar.

_Tudo bem, doutora.

_Você tem uma dermatologista de confiança? Se quiser, eu posso lhe indicar esta aqui. Disse a médica me passando um cartão. Passe no consultório dela amanhã, que ela poderá lhe ver com urgência. Esta alergia está ficando muito feia.

_Doutora, estou morrendo de coceira.

-Mas, não coce porque pode fazer ferida na pele. Ou se for coçar, não passe as unhas, mas esfregue as mãos em cima da roupa.

No dia seguinte, fui à dermatologista que me examinou e me receitou mais comprimidos e pomadas.

_Silvia, se você não melhorar até amanhã, vá ao Pronto Socorro e me telefone.

_Obrigada, doutora.

Fui para casa depois de passar na farmácia e comprar mais remédios, que a dermatologista tinha receitado. No entanto, não consegui dormir durante a noite. De madrugada, levantei gemendo de coceira. Meu corpo já estava todo vermelho e inchado. Barriga, coxas, costas, braços, pernas, até o couro cabeludo era uma coceira só. Comecei a sentir pressão no peito e dificuldade de respirar.

Felizmente, minha mãe estava em casa para ficar com a Fernanda, porque o Fernando teve que me levar ao Pronto Socorro. Enquanto isso, eu ligava para a dermatologista me encontrar no hospital. Cheguei lá e o Clínico Geral de plantão me examinou. Eu reclamei de coceiras terríveis, mostrei os inchaços e a vermelhidão, inclusive no couro cabeludo. Fizeram um exame de sangue e eu estava com infecção, então, resolveram me internar.

Quando a dermatologista chegou, eu já tinha tomado mais uma injeção de antialérgico. Aumentaram minha dose para 40mg a cada 12 horas.

_Silvia, esta dose é muito forte. É tão forte que você terá que passar uns três meses só para ir deixando de tomar o remédio, pois ele costuma causar dependência físico-química. Teremos que reduzir a dose aos poucos, bem lentamente para você não ficar dependente. Mas, pode contar que vai levar uns seis meses para deixar de tomar o remédio. Além de dependência, ele causa inchaço. Produz uma sensação de ansiedade e tira o sono. Você vai sentir que está mais disposta do que antes, mas é um efeito enganoso, porque ele destrói os órgãos vitais como o fígado, o coração, os rins, por isso é tão contra-indicado. Mas no seu caso, em que a alergia já provocou queimadura de primeiro grau e está tomando as vias respiratórias superiores, não há alternativa.

Foi assim que eu descobri que existem emergências dermatológicas. A médica tirou uma amostra de pele e mandou fazer uma biópsia. O diagnóstico foi alergia causada por substância química: antibiótico.

Daí, nasci de novo.