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terça-feira, 22 de junho de 2010

Brincadeiras de Criança


Alice e Mônica eram irmãs e amigas muito próximas. A diferença de idade de alguns meses colaborava com esta proximidade, uma tinha 13 anos e a outra 12. Por isso, Berenice, a caçula de cinco anos, não era a companhia predileta. Viviam no campo, no interior de São Paulo, na época em que nem se cogitava em transformar Piraju numa estância turística, ou circuito de águas limpas. É verdade que as águas eram bem mais limpas. E a região sempre foi muito bonita. Se hoje se pode visitar suas cachoeiras, praias e florestas; na década de 40, era o paraíso.

Para estas crianças que viviam no meio do mato, não existiam as mesmas brincadeiras que as crianças têm hoje. As bonecas eram feitas com batatas, espetadas em quatro palitinhos, o que virava um boizinho. Ou ainda eram feitas numa espiga de milho cheia de fiapos, que viravam cabelos. Fazer boneca com sabugo de milho era comum.

Assim como era comum correr pelos campos, ir atrás das galinhas, ou atrás dos cachorros _ amigos fiéis. E quando se decidia roubar frutas no pomar dos vizinhos?

Era uma aventura: pular cerca, correr pelo pomar, subir nas árvores e comer as frutas. Fruta madura era uma delícia, mas fruta verde também valia. Bastava que para isso se carregasse um pouco de sal nos bolsos da jardineira (um tipo de calça de brim curta com suspensórios e um grande bolso no peito). Jogar sal tirava a acidez da fruta verde. Levar uma faquinha era útil, mas na falta de faca, os dentes ajudavam a tirar as cascas. O importante era comer a fruta no pé. Não havia nada tão prazeroso!

Berenice saía com a prima Maria Rita, ambas com a mesma idade, cinco anos, vizinhas na roça. Criança no meio do mato não corria perigo. Sabia se virar. Era mais ágil e mais esperta para conviver com a natureza. Mas o que criança nunca tem noção é do perigo.

_Berê, vamo pegá fruta no pomar do seu Genésio? É época de manga!

_Oba, vamo embora, Ritinha!

_Berê, vamo pegá sal na sua casa porque está mais perto!

_Vamo! Berenice passou na cozinha, pegou uns punhados de sal e pôs no bolso da jardineira. Então, as duas saíram correndo, passando por Dona Maria que estendia a roupa no varal de corda.

_Berê, não vai roubar fruta do seu Genésio novamente, porque ontem ele passou aqui reclamando e avisou que colocou um cachorro bravo para atacar quem entrasse na sua fazenda!

Berenice e Ritinha saíram correndo, mais preocupadas com as mangas que iriam comer do que com a recomendação de Dona Maria. Mas, por via das dúvidas, voltaram à cozinha e pegaram um pedaço de carne crua. Alegres conversavam:

_Seu Genésio é muito guloso e não vai comer todas aquelas mangas. Disse Ritinha.

_Por que a gente não pode pegar um pouco? Concordou Berenice. Uma olhou para outra de um jeito maroto e sorriram.

Berê tinha bastantes cabelos, pretos e cheios. Apesar de que vivia suja de terra e descalça, a mãe mantinha seus cabelos curtos, para mantê-los limpos e combater mais facilmente as lêndeas, inimigas das crianças na época de calor. Maria Rita era mais clarinha de pele, sardenta e com cabelos finos, lisos e castanhos. Por isso, sua mãe sempre os deixava presos num rabo de cavalo. Ambas viviam pulando e correndo pela terra, por isso era difícil descobrir até mesmo a cor de suas peles, no meio de toda a sujeira.

Enquanto Berê e Ritinha corriam pelo campo até a fazenda do seu Genésio, Alice e Mônica, sentadas na varanda, tinham uma idéia:

_Vamo até o rio, Mônica? Está um calor terrível! A gente põe o maiô e vai nadar.

_Boa idéia. Disse Alice. Mas nós temos que colocar o maiô embaixo da roupa e sair sem a mãe perceber, senão ela vem com alguma idéia de fazer a gente passar até a venda.

_Tá bom!

Alice e Mônica já eram mais cuidadosas com a própria imagem. Tinham a pele clara e os olhos castanhos claros; o que já se via melhor, uma vez que não andavam tão empoeiradas como a caçula. Usavam vestidos simples de chita, mas mantinham os cabelos compridos e bem penteados. Usavam sandálias de dedo, ao invés de viverem descalças e também não possuíam tantos cabelos como Berenice e Tereza, a caçula e a mais velha.

Puseram o maiô e se dirigiram ao portão, mas Dona Maria, que percebia todos os movimentos da casa, gritou:

_Meninas, venham cá, eu preciso de um favor!

_Eu não falei que ela iria nos pedir algo se não fôssemos espertas? Disse Alice. Para a Berê ela não pede nada.

_Mas também, a Berê está sempre suja! Falou Mônica.

_É verdade. Comentou Alice, com um risinho maldoso.

Aproximaram-se do varal e perguntaram:

_O que a senhora quer, Dona Maria?

_Comprem um saco de açúcar porque hoje quero fazer bolo de fubá. E um saco de farinha! Complementou Dona Maria passando a mão no bolso do avental. Aqui estão os tostões!

As meninas se afastaram, mas continuaram reclamando.

_Diacho que ainda vamo tê que carregá peso! Reclamou Alice.

_ Vamo à venda primeiro, aí nós voltamo e vamo ao rio. Sugeriu Mônica.

_Assim podemo nadá a tarde toda!Aprovou Alice.

Enquanto as duas iam e voltavam, andando pela terra por alguns quilômetros, Berenice e Maria Rita seguiam em direção à cerca do seu Genésio, atentas ao novo cachorro bravo.

_Venha, Ritinha, vamos ao pomar!

_Você está carregando a carne, Berenice?

_Estou, por quê?

_Porque acho que o cachorro está vindo!

Era um cachorro grande, com cara de bobo, castanho, orelhas caídas, totalmente avesso a estranhos. Era um fila brasileiro. As meninas tentaram alimentá-lo e fazê-lo mudar de idéia de atacá-las, porém, este cão não era manso. Ele aceitou a carne, mas continuou latindo. Então, quando Berê e Ritinha perceberam que não conseguiriam fazê-lo mudar de idéia, resolveram aproveitar o momento em que o cachorro se distraía com a carne e correram para a cerca.

Berê ajudou Ritinha a pular, mas quando chegou sua vez, como o cachorro estava já aos seus pés, ela pulou a cerca correndo, e acabou com o braço pendurado no metal.

_Ai, ai, Ritinha, me ajuda! A menina sentia bastante dor, mas o susto de ver todo aquele sangue escorrendo a espantava ainda mais.

Sorte que Dona Maria era daquelas mães observadoras e espertas, que sempre sabem o que os filhos vão fazer.Pois ela seguira as pequenas e pulara a tempo de ajudar Berê a tirar o arame farpado do antebraço.

_Menina, eu não avisei que não fizesse isso?

_Mas mamãe! Copiosas lágrimas encharcavam seu rosto, vermelho de medo, de susto e de dor.

Dona Maria pegou Berenice no colo e levou a filha até em casa. Colocou-a sentada na cadeira da cozinha; foi pegar uma toalha limpa e um litro de álcool para limpar o machucado. Infelizmente, o sangue jorrava sem parar.

Neste momento, Alice e Mônica chegavam cansadas com os sacos de açúcar e de farinha. Mal tiveram tempo para deixá-los no chão da cozinha e notaram o que ocorrera. Já sabiam que ainda não poderiam nadar no rio. Sua mãe ao vê-las gritou:

_Vão correndo chamar seu pai na oficina, porque ele vai precisar levar Berenice para o médico. Acho que vai precisar costurar o seu braço.

E lá se foram as duas, antes tão ansiosas para nadarem, agora caminhavam mais alguns quilômetros para chamar o pai na oficina. Que droga esta Berenice, este porquinho do mato, que só dá trabalho. Tudo o que elas planejaram há horas era irem ao rio e darem muitas braçadas naquelas águas límpidas e refrescantes. Novamente o desejo se adiava,agora por causa da caçula.

Chegando à oficina, o pai as recebeu feliz.

_Oi, meninas, vieram visitar o pai?

_Antes fosse. A Berenice não obedeceu à mãe e foi roubar fruta no seu Genésio. Delatou Alice.

_Aconteceu alguma coisa? Ângelo levantou do chão alarmado. O compadre falou que tinha posto um cachorro bravo dentro de sua propriedade. Ela foi mordida?

_Não, pai. Disse Mônica com ironia. Ela correu do cachorro e ficou com o braço preso no arame da cerca.

_E agora o braço não pára de sangrar. A mãe disse que ela vai precisar de médico. Acho que vai ter que costurar e tomar injeção. Complementou Alice.

_Virgem Santa! Venham, meninas, eu levo vocês para casa!

Ângelo chegou em casa preocupado. Porém, a preocupação virou ação quando viu Berenice com o bracinho embrulhado numa toalha ensopada de sangue. Pegou a filha no colo e levou-a até o médico mais próximo. Ao chegar, o doutor limpou novamente o corte e deu uns quinze pontos. Em seguida, ainda aplicou uma injeção antitetânica. Berenice resistiu a tudo corajosamente. No entanto, quando chegou em casa, a mãe a aguardava.

Na porta, com a cinta na mão, Dona Maria deu uma surra em Berenice.

A menina soluçava, mas não dizia nada.

Ângelo, depois de ver a surra na filha, virou para a esposa e perguntou:

_Escuta, ela não sofreu o suficiente?

Berenice olhava para a mãe como cão sem dono. Com os olhos inchados de chorar.

_Isto é para você aprender a ouvir sua mãe quando ela lhe disser para não fazer alguma coisa. Tá vendo só? Olha o que você fez consigo mesma? Agora vai para o quarto e fica o resto do dia na cama, de castigo.

Quando via a mulher nervosa, Ângelo estava acostumado a ficar quieto. Se fosse por ele, o machucado já teria sido a lição suficiente.

Finalmente, Alice e Mônica foram ao rio. Aproveitaram a distração dos pais e foram nadar. Alice era exímia nadadora. E aprendera sozinha. Explorando aos poucos o leito do rio Paranapanema.

_Vamos atravessar do outro lado e voltar? Perguntou Alice.

_Você sabe que nada muito melhor do que eu. Mas eu vou tentar, se eu cansar, eu volto e fico esperando, tá bom? Respondeu Mônica.

_Tá bom! Confirmou Alice.

Dar braçadas naquele rio era delicioso, pois era um rio caudaloso, de águas abundantes. Alice se sentia um peixe quando começava a nadar. Aliás, ela podia ver vários peixes se parasse e observasse. Era uma água limpa e transparente. Nadou. Nadou.

Quando estava quase alcançando a outra margem, começou a sentir uma dor de barriga furiosa. Mas ela estava no meio do rio. Era longe e tinha que continuar nadando. Percebendo que a dor de barriga a dominava, não se fez de rogada. Olhou para as margens e percebeu que estava bem distante, então ninguém a veria. Não podia mais segurar. Puxou o maiô e cagou ali mesmo.

Depois, sentiu-se aliviada. Continuou nadando para encontrar a irmã que já parara. Ao se aproximar da margem, viu que estava cheia de crianças, adolescentes como ela. Olhou bem e percebeu que todos riam muito, ou melhor, gargalhavam. Virou para o lado e percebeu que um monte de merda a acompanhara.

Desde então, deram-lhe o apelido de Boião.

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