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quarta-feira, 25 de maio de 2011

O Jogo


Augusto, vem aqui ! Augusto, tá me ouvindo? Na rua de paralelepípedo, a senhora carregava um bebê no colo e dava a mão para uma criança de três anos, enquanto gritava. Vestia roupa de chita. Usava sandálias de couro. Madrugada. Fazia um tremendo frio. Todos vão saber que tipo de pai você é! Augusto amava os filhos. Tinha aprendido a ser um pai carinhoso e protetor do mesmo modo que sua mãe. Suave, todo olhar se encantava por ela. A brandura de suas palavras e o calor de seus braços, só faziam Augusto lembrar como ela o tinha ensinado a amar. A mesma doçura surgiu quando conheceu Maria. Treze anos. Pensava em como sua cara séria e concentrada, seu mau humor e irritação adolescentes eram difíceis de dominar. Ela era uma bugra. Tão jovem e tão inocente rebeldia fizeram Augusto se apaixonar aos dezenove anos. Conheceu a menina na fazenda do pai. Tinha ido ensinar os lavradores a usarem um trator. Numa noite de festa, na casa grande, Augusto enlaçou a cadeira em que Maria estava sentada. O fazendeiro invocado, levantou o nariz. Casa quando? A responsabilidade de Augusto respondeu. Amanhã.

Na rua, Maria olhava para a velha casa, no meio do povoado. Todos sabiam que os homens se encontravam ali para jogar cartas. Há três meses, toda vez que recebia, Augusto arriscava a sorte. Algumas vezes levou dinheiro para casa. Mas, na maioria, levou os braços vazios e trouxe mais desespero e fome. Maria não suportava mais. Não era de falar muito. Mas matutava. Descobriu pela vizinhança onde o jogo ocorria. No meio da noite, pegou as crianças e foi trazer o marido para casa. Usou todo o ódio de sua voz, toda indignação guardada nos armários vazios da cozinha. Augusto, enquanto perde dinheiro no jogo, seus filhos morrem de fome!

Augusto tinha sido preparado para sair de casa. A mãe fervorosa não admitia o casamento arranjado com a prima, que o pai queria realizar. O filho não gostava de Tininha, então ela implorou ao filho. Vá embora viver sua vida! Que Deus te abençoe! Augusto foi. Abandonou a vida confortável e começou a trabalhar. Mexia no motor do automóvel de seu pai. Foi trabalhar na Ford. E quando o pai de Maria resolveu comprar um trator, Augusto foi ensinar. Conheceu Maria e se casou. Levou a menina para casa e teve que ensinar tudo. Era um jovem bom e paciente. Passou a viver de arrendador do sogro. Não era bom lavrador. Passavam dificuldade. Raramente apareciam carros para consertar. As filhas nasciam e a comida faltava. Tinha que jogar!

Mas quando Maria apareceu naquela madrugada, carregando duas filhas menores. Aquilo doeu. Ela tinha razão. Que tipo de pai ele era? Que vergonha deixar a verdade berrar! Saiu encolhido e nunca mais jogou.

sábado, 21 de maio de 2011

Pai


O cachorro furioso se aproximou da menina de três anos. Se não fosse o pai tirá-la da frente e colocar a mão para protegê-la... É fácil proteger uma criança. Difícil é proteger o filho adulto. Apesar da mordida do cachorro ter causado alguns pontos na mão.

Meu avô não pôde proteger a filha Teresa de um mau casamento. Pediu, implorou, avisou. Sabia que as consequências não seriam agradáveis, mas não pôde fazer nada. Na igreja, todos o viram chorar até perder o fôlego e se admiraram. Era um casamento, não um funeral. Quando minha tia se casou, meu avô sabia que não podia protegê-la como meu pai fez comigo. Para uma criança ser pai é ser protetor. Meu pai sempre foi meu herói! Quando surgiram momentos na vida em que abri mão dos meus sonhos devido ao seu trabalho, eu o odiei. Deixei de acreditar. Mudar de São Paulo para Tucuruí, depois para Belém, depois para Brasília, sem poder fazer faculdade onde eu queria. Foi o suficiente para me tornar contra a instituição paterna, palavras do meu pai. Mal percebia que tudo partia dele. Os sonhos tinham vindo dele. As frustrações tinham vindo dele. Meu pai foi uma águia; jogou a prole da ribanceira e os fez voar. Meu avô foi uma galinha: protegeu até onde alcançaram suas asas!

Aos três anos, meu pai me salvava de uma mordida e começava o discurso: Não acredito que você diga que não consegue. Consegue sim. Consegue tudo. Temos que aprender a lutar para conseguir nossos objetivos. Não podemos esperar que outros façam o que precisamos ou queremos. No momento em que mais precisamos de ajuda, ninguém aparece para nos ajudar. Devemos levantar a cabeça e irmos à luta. Duro para uma criança? Verdade indiscutível. Não adiantou ele dizer que se enganara. O tempo tinha passado. Esta alma de cavaleiro tinha penetrado de tal forma naquela menina de três anos, que jamais acreditaria novamente. Vestiria o elmo e o escudo e sairia à luta, nunca entregando o coração. Nunca confiando no outro para realizar o que queria. Assim cresci. Dura por fora. Melada por dentro. Tanta doçura guardada acaba virando veneno.

Meu avô chorou, implorou, mas a filha Teresa casou com o cara mais bêbado, irreverente e preguiçoso de Piraju. Dali por diante, ela assumiu a responsabilidade. Foi mãe, esposa e mantenedora do marido, que nunca se esforçou para fazer nada. Nos últimos dias, quando esclerosado, ele perdeu a consciência, ela cuidou dele como mãe até seu último suspiro. Só lembrava as palavras do pai: Quem come a carne tem que roer o osso. A galinha também sabe ser uma águia.

Meu pai ainda vive elegante e inteligente. Ídolo de minhas inspirações. Modelo de minha vida. Antagonicamente, ele é a fonte da minha força e da minha fraqueza. Da crença e da dúvida. Da alegria e da tristeza. Da dor e da esperança. Pai é a estrela que ofusca enquanto meu planeta vive. Pai é tudo.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O beijo


Encontrei com ele no caminho do clube, a uma quadra de casa. Estava chovendo, o que ocorre todo inverno. Dizem que as tempestades têm hora marcada, mas não é bem verdade! Calor de 40º e chuva. Era meu colega de classe. Fomos andando e conversando debaixo dos pingos. Ele me deu o primeiro beijo. Molhado: de chuva, de saliva, de medo e curiosidade. Com treze anos, isso era importante, ainda que eu não fosse apaixonada. Abre a boca? Passa a língua? Os amores platônicos são mais profundos. Ocorreu na chuva, ou não teria ocorrido. Para os meninos isso também não é fácil. Nunca mais falamos sobre o beijo. Continuamos nos beijando muitas vezes. Íamos à piscina todos os dias. As opções eram limitadas. Conheci seus amigos e seus pais. Não durou muito. Foi o primeiro. Brigamos sem motivo, começamos sem motivo. Aconteceu. E talvez a chuva tenha dissolvido.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Encontro

Empurro com esforço o portão enferrujado. A república em que ele mora é uma casa velha, caindo aos pedaços, numa ruma sem saída, com grama alta e lixo na porta. Sinto um ar azedo. Ele acompanha o livro aberto. A cabeça raspada dirige a atenção surpresa para a porta. Oi, tudo bem? Os braços tatuados pegam a única cadeira velha no canto. O corpo sem camisa se volta para a cama desfeita, enquanto a calça de moleton surrado se estende à minha frente. Encaro os dedos sujos dentro do chinelo havaiana.

Domingo é fim de festa. Esperei desde às três da tarde até que ela apareceu. Você está esperando alguém? Estou, marquei encontro com um cara. Ele é seu namorado? Não, mas me convidou para ir ao cinema ontem à noite e eu não aceitei. Por quê? Sei lá... liguei para ele e deixei um recado de que o encontraria aqui às três horas. Já passou meia hora, acho melhor você desistir. Tchau!

Conheci-o na sexta à noite, numa praça da Cidade Universitária; sentada com amigos entre um copo e outro de cerveja. Seu rosto dourado sorriu. Calça, camisa e sapatos impecáveis vieram até nossa mesa. Seu perfume amadeirado trazia vários exemplares de uma publicação caseira. Escrevia versos de barítono. Conversamos. Trocamos olhares e telefones. No dia seguinte, ele ligou, mas recusei o cinema assustada.

Ela aparece na república, quando me vê abaixa a cabeça. Ele levanta e vai conversar por instantes. Sinto a roupa ficar apertada! Ele volta. Quando você telefonou, ela atendeu e não me deu o recado. Resolveu ir atrás pra saber como você era. Mas não esperava te ver aqui. Ela é minha namorada!

Cafezinho

Maria era pequenininha. Trabalhava numa multinacional, com sede no décimo oitavo andar de um edifício todo envidraçado. O prédio aparecia tanto quanto o chefe de Maria. Ela saía de casa, longe de qualquer saneamento, alimentação, educação. Andava quilômetros. Pegava trem, metrô e ônibus para chegar cedo e verificar que não tinha pó de café, não tinha açúcar, não tinha coador. Ia ao supermercado mais próximo, comprava a mercadoria e trazia a notinha. Tinha que carregar dinheiro para estas emergências rotineiras. Chegava, corria à cozinha, punha o avental branco e deixava tudo preparado antes que o Senhor André chegasse. Seu serviço era o primeiro que aparecia, pois o homem mal entrava e já pedia o café. Neste dia, teve greve de ônibus. Caminhou mais quilômetros do metrô até o trabalho. Chegou atrasada. Não tinha adoçante e não teve tempo de comprar. Preparou o leite, as bolachas, o pão fresquinho, o café com açúcar. Mas a esposa do senhor André apareceu. A mulher era magra esquelética, vivia de regime. Não aceitou o café com açúcar. Senhor André, pela primeira vez, chamou Maria. Que incompetência é esta? Como pode, sua idiota, esquecer de comprar o adoçante? Não sabe que o café tem que estar em ordem? Não sabe que precisa comprar o que falta? Há quanto tempo você trabalha aqui? Maria abaixou a cabeça e tentou explicar. Mas o homem nervoso acabou derrubando o café da xícara que segurava. Maria abaixou para limpar. Senhor André distraído pisou em Maria, escorregou, bateu a cabeça na mesa e mergulhou para o inferno através da janela aberta. A viúva feliz recebeu a herança. Maria perdeu o emprego.

domingo, 15 de maio de 2011

Choque

Mãe, cadê o ar? Rosto e braços molhados de suor. Treze anos, saída de uma grande metrópole, ingressava na mata espessa da Floresta Amazônica, cuja umidade consumia o oxigênio do ar. Que droga! Aterrissava em Belém às quatro da tarde. Ver o mundo em meio às nuvens tinha sido incrível, mas aquela opressão era insuportável. Pior foi viajar de monomotor até Tucuruí. Chacoalhava como um liquidificador. Que ânsia de vômito! Das janelas, em meio às nuvens espessas, via mato e mais mato, água e mais água. Sentia-se uma das bactérias da região. Oito assentos, contando piloto e copiloto. Seu irmão de oito anos, fascinado, olhava o controle do avião bem à frente. Pensava em ser piloto. O máximo! Mas o calor! A casa era imensa: três quartos, sala de amplos ambientes, quintal aberto para a floresta e varanda extensa. À noite, receberam uma visita: uma aranha do tamanho da mão de um adulto. Mãe!!!!!! Munida de uma vassoura começou as pauladas: uma, duas, três, quatro... parecia filme de horror. Várias pauladas depois, o bicho está morto. Estava? Incontáveis aranhas minúsculas se espalharam. Mais pauladas. Mais inseticida. Outras visitas apareceram: como um escorpião embaixo da geladeira. Ratos que se acomodaram no forro do teto. O que mais a irritava eram os grilos. Apareciam em todos os lugares e cantavam todas as noites. Tiravam o sono. Virou caçadora de grilos. Entrava no quarto, acendia a luz e enquanto não matasse todos os grilos não sossegava. O ritual se repetia noite após noite. Bom era ir ao clube, nadar, brincar, andar de bicicleta, namorar.

domingo, 8 de maio de 2011

Espera



Lá estava desde às três da tarde. Domingo, as ruas eram tranquilas. Eis que aparece uma garota. Você está esperando alguém? Estou, marquei um encontro com um cara. Ele é seu namorado? Não, mas me convidou para ir ao cinema ontem à noite e eu não aceitei. Não aceitou? Por quê? Sei lá, não fiquei com vontade e recusei. Mas aí, liguei para ele e deixei um recado que o encontraria aqui, neste lugar às três horas. É, às vezes, a gente perde a chance e nunca mais tem outra oportunidade. Já passou meia hora, acho melhor você desistir. Tchau!

Ela o conhecera há dois dias. Estavam na praça, na Cidade Universitária. Sentada com amigos no horário do café, ele apareceu. Trazia nas mãos vários exemplares de uma publicação caseira, de sua autoria. Era um poeta. Interessante. Ativo, inteligente, poeta! Conversaram. Afinal, ela e os amigos participavam do Centro Acadêmico e muitas atividades culturais do Curso passavam por eles. Era sempre importante saber o que outros colegas faziam. Precisavam divulgar e publicar, incentivar outros com ideias semelhantes e agitarem o Departamento.

Moreno, alto, bonito e sensual, como dizia a letra da música. Talvez ele fosse a solução para os seus problemas... Trocaram telefone e a conversa ficou por aí.

Na noite seguinte, ele telefonou. Vamos ao cinema? Não. Por quê? Ah, não tô a fim. Tem certeza? Tenho. Tá bom, tchau! Aí, ela se perguntava: por que não tinha aceitado? Bem, vai saber...
Domingo seguinte, ligou para ele. Não estava. Uma garota anotou o recado. Então, ficou esperando naquele ponto de ônibus. Um ótimo lugar para marcar encontros e não parecer que estava esperando alguém. Mas como aquela garota tinha adivinhado?

Segunda-feira, foi atrás dele. No quarto da república onde ele disse que morava. Encontrou-o. Começaram a conversar até que surgiu a garota do ponto de ônibus. Ele se levantou e foi falar com ela. Depois voltou e esclareceu a história.

Ela é minha namorada. Quando você telefonou, ela atendeu e não me deu o recado. Resolveu ir atrás para saber como você era. Mas não esperava vê-la por aqui. Então, ficou muito sem graça...
A conversa não durou muito. Tudo foi embora como o vento. A empolgação transformou-se num balão furado, cuja borracha foi o estranhamento. A mentira é curta e vergonhosa para o mentiroso.

Filho

Dor é ultrapassar a vida do filho. Palavras do avô, quando a filha morria de câncer. Ele teve um derrame. Oitenta quilos carregados escada abaixo pelo genro e esposa. Era diabético. Dois enfartes.
Três das quatro filhas lamentaram a partida do pai e a agonia da irmã no Natal e Reveillon. Um buraco na trama familiar: dois fios cortados em um mês. O avô sucumbiu para não acompanhar o trânsito da filha. A tragédia acompanha gerações.

Vinte anos depois, a neta diabética precisava seguir uma dieta rígida. Abriu a geladeira e pegou um pé de brócolis florido. Difícil de ser cozido, lindo de ser observado. Era seu aniversário. O buquê saído da geladeira era um presente. Do filho que teria sido e nunca foi. Conversava com o bebê. Sentia companhia e compreensão. Não imaginou a solidão. Luto gritante de seis meses.

Sétimo mês de gravidez, enjôos são incomuns. Foi trabalhar, mas sentia cansaço e vontade de vomitar. Voltou para casa. De manhã, ainda passava mal. Ligou para a amiga médica. Vá para o Pronto Socorro! A sogra a acompanhou. O Clínico Geral verificou a ausência de batimentos cardíacos. Fizeram ultrassom. O feto tinha má formação? Não.

Como assim, não tem batimentos cardíacos?

Tinha dores no peito e muita dificuldade de respirar. Foi para a UTI. Passou a noite. O obstetra veio pela manhã. O bebê está morto. Não podemos fazer cesariana. Há risco de infecção. O parto precisa ser normal, induzido. E foi. Senti tudo. Mas pedi para não ver o bebê. Lutava pela vida e esquecia que matava o futuro.

Não pegou no colo. Não limpou. Não vestiu. Não enterrou. Negou a desolação.

O avô teve quarenta e cinco anos com a filha. Eu tive a barriga que cresceu e que nos últimos tempos mexia dentro de mim. A realidade vive dentro e não fora. O bebê nunca floresceu, ao contrário do pé de brócolis esquecido na geladeira. Herdou a doença. A dor persiste e os filhos passam. Berro surdo no espaço. Aberração.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Mosca Amarela


Bom dia, mosquitinho! De segunda a sexta-feira. Bom dia, mosquitinho! Mãe e filho passam correndo. Às vezes ao lado. Bom dia, mosquitinho! Às vezes ao lado de outro. Bom dia, mosquitinho! Já virou uma brincadeira. Bom dia, mosquitinho! O dia começa feliz.

Triste, quando não visto. Culpa dos ônibus que tiram a visão. Culpa do trânsito. Precipitação. Grande mosca amarela e um mosquito mínimo, desproporcional. Bom dia, mosquitinho! Faz a alegria do dia. Mãe e filha, a caminho da escola, identificam o grafite no muro.