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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Uma História de Amor



Nada é melhor do que aquele cheiro de café por fazer. O aroma, a temperatura e a cor estimulam seu consumo diário. Aquele café necessário não apenas para abrir os olhos e levantar, como acordar e despertar o desejo pelo trabalho. Um desejo que precisa lutar contra a inércia de ficar na cama, rolar nos lençóis e agarrar o travesseiro. O café faz milagres, porém o maior milagre é despertar desejos adormecidos.

Não é dia, é noite. É tarde, bem tarde. Na verdade, é hora de dormir. Mas o desejo está acordado, chamando, gritando, pedindo pela realização de outros desejos. Os hálitos de café e de sono guardam o tempero de outras vontades. Os braços que se tocam carregam nos pêlos outros quereres. As bocas se mexem e falam. Mas realmente não importa o que digam. Só importa estar lado a lado com o objeto de desejo.

É quase meia-noite. A aula acabou. A sala está vazia e as perguntas já foram respondidas. Um trecho de O Imortal de Jorge Luís Borges foi discutido. Justamente o trecho em que o narrador descobre quem era o troglodita, a quem apelidara de Argos, o cão moribundo da Odisséia. Depois de tantas aulas e tantas turmas, pela primeira vez um aluno descobria que se tratava de Homero, o próprio autor de Odisséia. Ele era especial.

A turma de Ciências da Computação estava tendo uma aula de Comunicação e Expressão. Era um momento de leitura e interpretação de texto. O que uma turma de Ciências da Computação vai conseguir tirar do texto? Pensava a professora. No entanto, a preparação das aulas fora sua. Houvera escolhido este trecho para a leitura e discussão da noite. Era início do mês de março de 2000. Começo do ano letivo e do semestre.

Os olhos se tocaram. Não havia nada de formidável à primeira vista: blazer levemente desbotado e amassado depois de um dia de trabalho. Ânimo e disposição sobre humanos para seguir à aula depois de oito horas de trabalho mais quatro horas de locomoção. Tinha que ter uma curiosidade e um interesse maiores do que a própria resistência. Além do auge da forma física dos trinta anos.

A aula acabou e uma carona foi oferecida. Era mais do que uma carona. Afinal, não importava que ele fosse para a Zona Sul e ela fosse para a Zona Oeste. Era mais um momento para estarem juntos. Ele era especial.

Cheio de sutilezas: um cartaz impresso comemorando o Dia Internacional da Mulher. Uma pesquisa sobre sua vida no Google, onde registrava a defesa de uma tese sobre O Processo Criativo de Haroldo de Campos nas Galáxias. Neste dia, ao receber de suas mãos a pesquisa, bateu a saudade de oito anos atrás, época em que defendera suas teorias. Época prazerosa, de grande aprendizado e um extremo prazer intelectual. Época em que o limite era a vontade e o gozo, o aprendizado.

Agora outro prazer se desenvolvia, o prazer de estar ao lado de alguém com sensibilidade para perscrutar o íntimo, abafado por momentos de dor e frustração. Algo além sempre nos move.

Assim, a carona levou ao Fran´s Café da Faria Lima. Não levou apenas esta vez, mas levava constantemente, duas vezes por semana. Então o Fran´s Café passou a ser o estacionamento da Faculdade, dentro do Ford K. Onde uma garrafa térmica servia como o garçon da cafeteria. E se falava do desejo de ter um filho.

As vezes em que se tomava café levaram a um passeio sábado de manhã no Parque do Ibirapuera. Sentados, à beira do lago a observar os cisnes. Horas se passaram. O suficiente para que o sol matutino deixasse um corado nos rostos. Na despedida, foi irresistível observar sua marcha ao se afastar do carro. E a vontade só crescia.

O desejo, no entanto, se realiza quando não se espera. Um encontro de tarde para levar a um exame de endoscopia, provocou sono. O sono levou ao motel. Neste dia, o amor se consumou:

_Assim eu posso ficar grávida.

_Quem disse que eu não quero ter um filho seu?

Então, Adônis conquistou Diana e Hera na mesma mulher. E o desejo de café virou um vício de amor.

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