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domingo, 8 de maio de 2011

Filho

Dor é ultrapassar a vida do filho. Palavras do avô, quando a filha morria de câncer. Ele teve um derrame. Oitenta quilos carregados escada abaixo pelo genro e esposa. Era diabético. Dois enfartes.
Três das quatro filhas lamentaram a partida do pai e a agonia da irmã no Natal e Reveillon. Um buraco na trama familiar: dois fios cortados em um mês. O avô sucumbiu para não acompanhar o trânsito da filha. A tragédia acompanha gerações.

Vinte anos depois, a neta diabética precisava seguir uma dieta rígida. Abriu a geladeira e pegou um pé de brócolis florido. Difícil de ser cozido, lindo de ser observado. Era seu aniversário. O buquê saído da geladeira era um presente. Do filho que teria sido e nunca foi. Conversava com o bebê. Sentia companhia e compreensão. Não imaginou a solidão. Luto gritante de seis meses.

Sétimo mês de gravidez, enjôos são incomuns. Foi trabalhar, mas sentia cansaço e vontade de vomitar. Voltou para casa. De manhã, ainda passava mal. Ligou para a amiga médica. Vá para o Pronto Socorro! A sogra a acompanhou. O Clínico Geral verificou a ausência de batimentos cardíacos. Fizeram ultrassom. O feto tinha má formação? Não.

Como assim, não tem batimentos cardíacos?

Tinha dores no peito e muita dificuldade de respirar. Foi para a UTI. Passou a noite. O obstetra veio pela manhã. O bebê está morto. Não podemos fazer cesariana. Há risco de infecção. O parto precisa ser normal, induzido. E foi. Senti tudo. Mas pedi para não ver o bebê. Lutava pela vida e esquecia que matava o futuro.

Não pegou no colo. Não limpou. Não vestiu. Não enterrou. Negou a desolação.

O avô teve quarenta e cinco anos com a filha. Eu tive a barriga que cresceu e que nos últimos tempos mexia dentro de mim. A realidade vive dentro e não fora. O bebê nunca floresceu, ao contrário do pé de brócolis esquecido na geladeira. Herdou a doença. A dor persiste e os filhos passam. Berro surdo no espaço. Aberração.

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