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domingo, 15 de agosto de 2010

Alice na vida real


Verônica era uma jovem magra, delicada, bonita. Tinha trinta e cinco anos e era arquiteta. Estava começando sua vida amorosa com Luís Antônio, um rapaz formado em Processamento de Dados. Aliás, conheceram-se numa sala de chat, em que Verônica assumira o nome de Alice, já que a história de Alice no país das maravilhas sempre fora sua predileta. Depois de vários encontros virtuais, combinaram de se conhecer num sábado à tarde, no Shopping Paulista.

Daí, a amizade e o companheirismo virtuais passaram ao mundo real. Agora, depois de um ano de namoro, decidiam morar juntos num apartamento da Vila Madalena. Verônica nunca tivera nenhum problema de saúde, a não ser uma tosse alérgica e insistente, que aparecia principalmente nos períodos de inverno, em que trabalhava demais, ficando horas acordada em cima da prancheta para finalizar seus projetos.

Recentemente, Verônica trabalhava num escritório de arquitetura que adequava a acessibilidade de prédios comerciais aos deficientes físicos. Adequava as rampas, os corrimãos de escadas, os banheiros, as entradas, as saídas e passagens dos cadeirantes. Verônica comentava como os empresários brasileiros são ignorantes e preconceituosos em relação aos deficientes físicos. Pois, certa ocasião, ouvira de um empresário, quando concluía o projeto de um teatro, dizer:

_ Você não precisa se preocupar com passagem ou acento para cadeirante, afinal, quantos são no Brasil? Nós não tivemos guerras para que alguém tenha perdido um braço ou uma perna. Eles não são tantos assim!

Verônica ouvira sem discutir, porque quem pode manda, e quem tem bom senso obedece. No entanto, os deficientes físicos podem surgir dentro de vários fatores: genéticos (nesse caso, eles já nascem com determinadas deficiências), vítimas de paralisia infantil (neste caso, podem não ter tomado vacinas de acordo com as orientações médicas), vítimas de AVC ou quaisquer outros problemas circulares ou neurológicos. Na realidade, os deficientes físicos são em maior número do que se tem idéia, no entanto, só nos últimos anos, devido à legislação brasileira é que têm recebido a devida atenção. É o que se nota, por exemplo, nos estacionamentos de supermercado, nos shopping centers ou lojas de diversos tipos.

Verônica estava trabalhando em projetos de acessibilidade aos deficientes, quando, ironicamente teve que enfrentar o maior desafio de sua vida. Naquela manhã, fora ao escritório e agitada, como sempre, andava aflita para concluir um projeto a tempo. Foi à cozinha do escritório tomar café e um estranho tremor começou a agitar sua cabeça, o que apareceu logo junto com uma dor lancinante. Alguns colegas de trabalho estavam a seu lado e a viram tremer. Tiveram que dispor de um cesto de lixo para depositar o vômito repentino que tomou conta de seu corpo. Tentaram falar com ela, que mal podia responder. A única coisa que conseguiu dizer foi:

_Chamem o Luís Antônio!

Aflito, em poucos minutos, Luís apareceu e a levou ao Pronto Socorro do Hospital Itamaraty, o mais próximo da região em que estavam. Ao dar entrada no hospital, Verônica tinha o lado esquerdo do rosto paralisado. Sua dor de cabeça e seus tremores continuavam. Fizeram exame de sangue, achando que fosse causado devido à diabetes. Porém, apesar de ser uma doença hereditária, somente sua irmã mais velha a tinha. Depois de esgotarem os exames e as alternativas mais viáveis, fizeram uma tomografia do cérebro e descobriram que uma veia, na altura de sua testa, do lado direito, havia se rompido. Neste caso, a maioria das pessoas tem morte instantânea. Mas Verônica continuava consciente, com o lado esquerdo do rosto paralisado, mas consciente. Então, o neurologista apareceu na enfermaria da UTI e conversou com sua mãe, Dona Berenice:

_Precisamos fazer uma cirurgia no cérebro de Verônica para drenar o sangue da veia estourada e colocar um clipe, a fim de que ela não morra com uma hemorragia cerebral. A cirurgia é demorada e delicada, porém deve ser feita com urgência para que sua filha sobreviva.

Qualquer mãe no lugar de Berenice começaria a chorar de desespero e a rezar muito para que Deus não lhe levasse a filha. Foi assim que Berenice fez: continuou sentada no hospital até que a filha saísse do centro cirúrgico. Não lhe importava a fome, o cansaço ou os limites impingidos pela idade. Tudo o que Berenice queria era que a filha sobrevivesse. Horas de cirurgia depois, a filha voltava para a cama da UTI:

_ Dona Berenice, a cirurgia foi um sucesso! Agora precisamos esperar que ela acorde para sabermos de fato qual a extensão dos danos que esta hemorragia possa ter provocado. Sua filha está num estado de coma induzido que pode durar horas ou dias. Esperemos que ela acorde. Continue a rezar, minha senhora! _ disse-lhe o cirurgião neurologista.

Rezar foi só o que Berenice fez. Ela, o marido e os filhos não se conformavam que Verônica tivessse que passar por isso, justamente no momento em que estava tão feliz, ao lado do homem que amava, o Luís Antônio. Mas, a vida às vezes cobra preços altos para se obter a felicidade.

Dois dias depois, Verônica acordava do coma. Estava com os braços e pernas paralisados, assim como o lado esquerdo do rosto. Não conseguia falar, porém ao perceber que a mãe estava ao seu lado, segurando sua mão, seus olhos se encheram de lágrimas e Dona Berenice percebeu pelo olhar da filha que ela entendia tudo o que se passava. Respirava graças a uma traqueotomia, estava ainda mais magra e abatida e não conseguia se mexer, nem os braços, nem as pernas, nem a cabeça, nem o tronco.

Um mês depois, Verônica saía do hospital para casa, só demorou a receber alta, devido a uma pneumonia que pegou na UTI, durante sua recuperação. Recebendo alta, começaram os tratamentos intensivos de fisioterapia, que a ensinariam a sentar, andar e se mexer novamente. Sem mencionar os tratamentos intensivos de fonoaudiologia que a ensinariam a comer e a falar.

_Seu caso foi milagroso! _ disse-lhe o médico. Sabe quantas pessoas têm morte instantânea devido a este problema? Setenta por cento dos casos!

Verônica fez fisioterapia por meses até voltar a andar. Fez tratamento fonoaudiológico por meses até que voltasse a falar como antes. Cinco anos depois, ela leva uma vida normal. Sua cicatriz na testa, depois da cirurgia, é insignificante. Atualmente, ela fala, come, anda, trabalha como fazia antes do aneurisma. Seu único efeito colateral foi uma leve paralisia no braço esquerdo, principalmente nos dedos da mão esquerda, que não possuem a mesma sensibilidade e movimentação da mão direita. Por isso, ela fez uso da lei que obriga as empresas a empregarem deficientes físicos e passou num Concurso Público para trabalhar na Secretaria da Cultura. Quem convive com ela diariamente nem percebe tudo pelo que passou.

Verônica teve que se adaptar a algumas situações do dia-a-dia para se cuidar, ou mesmo para cuidar da casa. É difícil acreditar que alguém, com trinta e cinco anos, tenha um AVC e consiga se recuperar voltando a viver normalmente. Ela é uma prova de que o amor à vida pode nos ajudar a superar qualquer obstáculo.

Quanto à Berenice, como acontece com todas as pessoas depois de acompanhar uma filha numa situação tão difícil, envelheceu dez anos em poucos dias. Mas reza todas as noites em agradecimento a Deus por ter-lhe poupado a filha.

Afinal, Verônica provou que era mesmo a Alice no país das maravilhas, conseguindo tornar sua vida feliz apesar dos desafios.

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