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quinta-feira, 8 de julho de 2010

1920


O pai era um rico relojoeiro, vindo da Itália, cuja família desembarcou no porto de Santos em 1880, chamado Amadeu Raphael Marino. Além de relojoeiro, era ourives. Carregava da família de origem todos os bens que pudera trazer, embrulhados dentro de sacos de pano, presos no forro das roupas. Não pudera trazer terras, nem castelos. Mesmo porque os nobres deixavam apenas aos filhos mais velhos seus bens e títulos. Assim, carregara da família o que pudera. Disposto a encontrar vida nova na terra até então desconhecida.

Seu filho mais velho, Ângelo Raphael Marino era um rapaz privilegiado. Fora uma das primeiras pessoas a ter um automóvel Ford no Brasil. O que não dirá no pequeno povoado de Iguape? Ser um jovem de dezoito anos com automóvel preparou-lhe para a profissão de mecânico quando a família faliu, em decorrência de uma grande enchente na região_o que soterrou ouro e jóias. Não apenas o que a família trouxera da Itália, como os bens adquiridos com os anos de trabalho.

Assim, Ângelo foi trabalhar como mecânico na Companhia Ford, quando esta empresa começou a se instalar no Brasil, produzindo tratores aos pecuaristas. Foi por esta ocasião, que aportou na Fazenda do Senhor José Mendes. Ofereceram-lhe um trator para facilitar a aragem e preparação da terra. Seu uso equivalia a puxar vinte cavalos, enquanto José Mendes sozinho puxava um burrico. Aventar a possibilidade de trabalhar mais em menor tempo e com menos esforço, entusiasmava o fazendeiro, que já previa poder plantar mais e ganhar mais dinheiro com a terra. Por isso, ele aceitou, desconfiado, comprar um trator, contanto que a empresa lhe enviasse um mecânico para garantir que a máquina funcionaria. O mecânico enviado a sua fazenda foi Ângelo Raphael Marino.

Senhor José era um homem trabalhador e determinado. Em sua personalidade não existia o manejo social, tampouco o carinho ou a dedicação de pai. Tinha quatro filhas, Maria, a mais velha, desde tenra idade era acordada pelo pai com um puxão de cabelo a fim de que buscasse água na mina. Não aprendera a ser carinhosa ou atenciosa. Para ela o amor não era doce ou suave, não tinha manifestações de incentivo ou acalento.

A mãe era kariboka, ou cabocla, filha de índia e português, vivia largada pelos campos quando conheceu o marido. Era forte, bonita, esperta, trabalhadora, características mais do que suficientes para ser boa esposa. Foi assim que José Mendes se casara com ela. Decidira ter filhos para o ajudarem na fazenda, então colocou-a dentro de casa. Mas a índia tivera quatro meninas. Para que serviam as mulheres além de cuidar da casa e do marido? José não tinha ficado satisfeito. Pelo menos, suas filhas serviam para ajudar a cuidar da casa. Por isso, Maria Astrogilda, a mais velha, era quem primeiro acordava. Como tinha sono pesado, Seu José a puxava pelos longos e fartos cabelos, que só para isso serviam.

Maria Astrogilda tinha treze anos quando isso acontecia. Não reclamava da violência, porque não existindo para ela nada de diferente, era parte do dia. Além disso, aprendia esta indiferença e dureza de atitudes com o pai. Com a mãe aprendia a ser mulher, portanto, naturalmente resignada e silenciosa. Mas Maria não era tão silenciosa, seu olhar falava alto. Seus olhos só eram mudos para quem não os observava. Seu José podia não ver, porém sentia a indignação da filha. Isso lhe fazia agir com ainda mais dureza. Afinal, mulher, além de tudo, filha de uma kariboka, não tinha direito de reclamar, tinha que fazer por merecer o que ele gastava com seu sustento.

Ângelo quando conheceu Maria ficou impressionado. Como uma menina podia ser tão determinada, tão forte, tão mal humorada. Algumas vezes, na fazenda, quando verificava o funcionamento do trator, Ângelo sentava na cerca ou num tronco de árvore, onde Maria estava sentada e puxava conversa. Adorava observar seus gestos bruscos e seu olhar determinado, que ao mesmo tempo falavam tão alto o que passava em sua alma.

Uma semana depois, Seu José Mendes convidou o jovem Ângelo para jantar com a família. Ângelo aceitou o convite. Na hora da sobremesa, Maria sentou ao piano para tocar um pouco do que aprendera com seu preceptor, um homem de preto, paletó e gravata, que vinha à fazenda uma vez por semana para instruir às filhas de Seu José.
Ângelo, num impulso, passa os braços ao redor do encosto da cadeira em que Maria sentava. Seu José na sua rispidez e seu jeito ladino, pergunta de chofre:

_Para quando é o casamento?

_Para o próximo mês está bom para o Senhor?

_Maria, comece a aprontar o enxoval!

Tanto trabalho, tanta arrumação! Maria já era ótima quituteira. Juntou as irmãs na cozinha e prepararam a festa. O enxoval fora preparado na correria, mas já tinha colocado num baú de madeira, as camisolas e roupas de baixo. Ainda bem que os futuros sogros ajudaram: o italiano Amadeu Raphael Marino e a brasileira Brasilícia Glicéria Rita de França. Maria nunca vira até então mulher mais delicada e elegante. Lembra-se a primeira impressão ao ser apresentada à sogra:

_ Mas ela é uma menina! Disse Brasilícia, com olhos delicados e comovidos, abraçando-a. Maria ficara muito impressionada ao receber tanto carinho e tanta doçura.

Foi divertido organizar a festa de casamento. Mas quando tudo passou, Ângelo levou Maria para casa, colocou-a na cama e ouviu de sua boca:

_Ângelo, eu não gostei desta brincadeira de casamento. Me leva pra casa?
Então, Ângelo percebeu que precisaria ter paciência. Pois casara com a força de caráter, com a dedicação, com o trabalho e com a ingenuidade. Tomara à força uma plantinha que ele tinha de cuidar. E foi o que fez por cinqüenta e oito anos.

Sorte minha tê-lo conhecido e ouvido suas histórias. Quando eu tinha treze anos e vivia mal humorada, discutindo com todos, ele sentava ao meu lado e dizia o quanto eu me parecia com minha avó. Então sorria, provavelmente o mesmo sorriso paciente que dava à minha avó cinqüenta anos antes.

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